Entrevista feita pela Editora DCL

Não dá pra acreditar que Tiago de Melo Andrade é paulista, seu sotaque e jeito mineiro revelam outra origem. Tiago nasceu em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, e desde pequeno mora em Uberaba, Minas Gerais. Já ganhou Prêmio Jabuti de Autor Revelação com o livro A caixa preta, em edição independente. Estudou História da Arte e atualmente cursa Direito.Conversar com Tiago é sempre muito divertido. Ele tem muitas histórias engraçadas. Com ele tudo é de gargalhar. Leia, com sotaque mineiro, a entrevista feita com Tiago de Melo Andrade, em recente visita à Editora DCL.
DCL – Tiago, as histórias de seus livros têm alguma inspiração em sua vida pessoal ou da sua família?

Tiago de Melo Andrade (TMA) – Sempre tem algumas coisas que têm a ver com a minha família. A batata infalível é uma delas. Minha tia recomendava pra todo mundo. É uma planta que dá no cerrado. Tem uma flor azul. Você só consegue saber onde tem batata plantada quando encontra essa flor. E a batata serve de remédio pra tudo. E o principal objetivo dela é curar picadura de escorpião, dizem que dói muito. Uma vez eu fui numa escola rural e não é que ganhei uma batata infalível? Muito engraçado. Outra coisa é o jeito de falar do matuto do fim do mundo, é como minhas tias falam, minha avó... São influências do meu dia-a-dia. Não costumo me inspirar em coisas que aconteceram comigo, não. Na verdade, busco vivências minhas que poderiam ser de qualquer pessoa. Minha vida não é tão interessante assim...

DCL – E a história de seu primeiro livro, que ganhou o Prêmio Jabuti, de onde veio a inspiração?

TMA – O primeiro livro que escrevi foi Memórias de uma pizza. Mas o primeiro livro publicado foi A caixa preta, e esse é o segundo livro. A idéia para escrevê-lo surgiu quando eu estava assistindo tevê. Era um clip no qual as cabeças das pessoas eram uma televisão. Aí eu comecei a refletir sobre o que eu estava vendo e cheguei na idéia da alienação pela televisão.

DCL – Como foi que chegou à conclusão de que deveria se inscrever no Jabuti?

TMA – Todo mundo que escolhe uma profissão, faz o curso: se você quer ser médico você estuda medicina, se você quer ser escritor, você vai estudar letras? A resposta é não, nem todo gramático é escritor e nem todo escritor é gramático. Eu precisava de uma referência. Como é que uma pessoa que nunca publicou nada vai conseguir entrar numa editora? O Jabuti é como se fosse um Selo de Qualidade Inmetro. O livro foi todo idealizado para caber dentro de um orçamento possível, numa edição pequena, para concorrer ao Jabuti e a outros prêmios.

DCL – Quantos exemplares você mandou imprimir?

TMA – Essa edição foi paga pela minha mãe, custou R$ 600,00 os 600 exemplares. Mandei seis para o Jabuti e o resto guardei. Olha que horror! Não tinha como sair na rua vendendo livro. Se a editora que tem estrutura pra isso já tem dificuldade, imagina o autor. É difícil vender livro.

DCL – E você esperava a premiação logo de cara?

TMA – Não vou dizer que eu não esperava nunca. Eu sabia que era muito difícil e que estava concorrendo com gente muito boa. Um por cento de chance eu tinha e tentei. Aconteceu que na época do prêmio estava rolando uma discussão sobre o papel da televisão, a função social da televisão. Houve uma grande coincidência de, na época, estar acontecendo esse debate que acabou dando certo.

DCL – Qual é a sua maior preocupação ao escrever para crianças?

TMA – Eu aprendi com a Otacília [de Freitas, editora executiva da DCL] a ser um pouco mais técnico, a ter mais cuidado com as informações com as quais estou trabalhando. Nós autores não podemos passar informações equivocadas. Os desdobramentos de uma história são vários. Tem autor que marca a vida de uma criança e isso é maravilhoso. Você deve ter tido um autor que te marcou. A cultura, a educação podem ser instrumentos para evolução ou dominação. Eu tento passar mensagens, se é que eu posso usar essa expressão: do bem, sem preconceito. É com isso que me preocupo, com a evolução. Antes de mandar um original para a editora, envio para contatos que tenho na área de educação, para que seja feita uma espécie de leitura crítica.

DCL – Você busca colocar alguma espécie de lição de moral?

TMA – Não é lição de moral porque não me sinto capaz de fazer isso. Convido à reflexão. O que pode acontecer é o de livro mostrar minha reflexão, meu ponto de vista, a respeito do tema tratado no livro, mas isso não quer dizer que o leitor vai interpretar como eu. Tanto que, às vezes, as crianças vêm sugerir outros desdobramentos para a história do meu livro que sequer imaginei.

DCL – Dá um exemplo.

TMA – Sou péssimo para lembrar. Por exemplo em A caixa Preta, muita gente leva pra outra coisa como a violência, a dominação cultural, outros pensam que é uma caixa preta de avião. E tem tiradas, que não vou conseguir lembrar, mas que dão um insight para um outro livro. É muito legal conversar com as crianças. A intenção do livro é sempre levar a um debate. No Brasil, os autores têm essa obrigação. A gente não vive na Europa, onde a educação é outra. O amigo eco fala da falta de solidariedade, do individualismo. Tá todo mundo preocupado com o próprio umbigo. Já O olho mágico fala do tédio. Eu fui um jovem entediado. Até hoje encontro jovens assim, alienados. Não vêm que as coisas estão próximas, mas às vezes ocultas. São pessimistas, achando que vivem todos os dias iguais, presos numa grande rotina e não é isso. Esquecem-se de que são cidadãos, que têm de zelar pela democracia, pela cidadania. Ouço muita gente falando que sente saudade da década de 1970, das lutas sociais. O que aconteceu: nós recebemos uma herança: a constituição de 1988, que nos reserva todos os direitos. Só que essa geração recebeu esse presente e não sabe bem o que fazer e esquece de vigiar. A gente não pode deixar esses direitos de lado. Mas se a pessoa não tem consciência disso, fragiliza a democracia, que foi conquistada a duras penas, e as pessoas ficam alienadas em seu mundo, pois acham que não precisam lutar por nada. Hoje o inimigo é invisível, o que deixa o jovem entediado. Há 30 anos, a ditadura e a censura eram nossas lutas.

DCL – Quanto tempo demora para escrever uma história?

TMA – Depende muito. Às vezes, uma semana, se o livro for curto. Agora, um livro como o 3x Amazônia demora mais, um ano. Demanda pesquisa, outras leituras.

DCL – E a escolha dos temas da Coleção Histórias fantásticas?

TMA – O fantástico é um tema que eu adoro. Leio muito Gabriel García Márquez, estou sempre me cercando do tema fantástico. Quando a história começa a ficar normal, sinto tédio. A criançada gosta do fantástico. O mais interessante é distorcer a realidade. Às vezes, alguma coisa que você acha boba, que está escrita num diário, pode se tornar uma coisa fantástica. Você não precisa colocar um extraterrestre na história. O fantástico está perto da gente mesmo sem enxergarmos.

DCL – Dá um exemplo.

TMA – A vida é fantástica. Você mora numa cidade fantástica. Acontece que você está acostumada, mas eu que não sou daqui, fico horrorizado.

DCL – Você está se referindo à chuva, por exemplo?

TMA – Não, falo do cenário mesmo. Ontem, quando estava vindo pra cá, o Rio Grande faz divisa com Minas e São Paulo, certo? Do lado de vocês, eu acho que é uma usina de cana. Eu vi aquilo como um cenário de terror. Aquela fumaça saindo da chaminé, uma sensação de horror. Isso é fantástico. E o fantástico está no olhar das pessoas. Agora, o livro extrapola isso, deforma a realidade mesmo. E é interessante, porque daí você faz várias interpretações. Não é um circo de horrores. As personagens estão inseridas num contexto...

DCL – É interessante que o leitor saiba de seu trabalho, suas preocupações e consciência e, ainda, da repercussão de seus livros. É verdade que tem uma biblioteca com seu nome?

TMA – Tem...numa escola rural, em Uberaba. Me chamaram para inaugurar a biblioteca, mas eu não sabia que a biblioteca tinha meu nome. Quando eu cheguei lá, tinha uma placa coberta com um troço. A hora que puxaram o tecido, estava o meu retrato (fiquei morrendo de rir de mim mesmo) e, embaixo uma placa de bronze com a inscrição: Biblioteca Municipal Tiago de Melo Andrade. É estranho e engraçado, com 27 anos... Meu irmão ficou dizendo que recebi homenagem póstuma estando vivo. Sou muito jovem ainda. Mesmo assim foi muito legal mesmo. E a importância dessa biblioteca e da escola para a região é grande. É uma referência para o lugar. Os pais se encontram ali. A comunidade que está fora da cidade tem na escola um ponto de encontro. As festas comunitárias chegam a competir com a igreja da cidade. É o centro da comunidade rural. Além de ser uma janela para o conhecimento. As pessoas que moram na área rural trabalham e moram muito perto. A moça da fazenda acaba de trabalhar e em cinco minutos já está em casa. Se tiver uma biblioteca como essa por perto, imagina que legal. Incentiva a formação de leitores nesse meio tão árido e que, aparentemente, não tem a ver com literatura, mas tem sim. A biblioteca cumpre esse papel.

DCL – Nessa escola houve adoção de seus livros?

TMA – A prefeitura tem um programa junto às bibliotecas. Dando verba para compra de livros. E como eu vou às escolas eles escolheram meus livros. Às vezes, eu vou em escolas conversar com 700 crianças.

DCL – 700 ao mesmo tempo?

TMA – É, sabe os pátios imensos das escolas? Então, eles ficam sentados ali. Aí me fazem perguntas, fazem apresentação de teatro, coral.

DCL – São homenagens a você? E as apresentações, têm a ver com a história de seus livros?

TMA – São. Nossa, cada coisa impressionante! Um menino que cantava e tocava violão musicou um trecho do livro Batata infalível. O menino tinha sete anos... Pintam painéis com reprodução das ilustrações dos livros... toda biblioteca tem um cenário e algumas bibliotecas tem autores premiados.

DCL – Como é o contato. Eu pergunto porque primeiro você é autor, depois você é superjovem, superalto.

TMA – A primeira coisa que os espanta é o fato de eu ser jovem. Eles sempre esperam um senhor, ancião, grisalho. Eu chego lá de tênis e aparelho... já viu, é engraçado. Quando eu vou a uma escola pública é um dia de festa, vou para a escola e não para uma turma de alunos. É um momento de comoção para eles e para mim. Tem um calor muito grande, e eles ficam totalmente inteirados da história. Na escola pública eles compram poucos livros, em uma, por exemplo, tinham quatro livros para 600 alunos. Por isso, eles compravam com um mês de antecedência e revezavam os livros, dividiam mesmo, os professores contavam, os alunos liam. Até dar o tempo de eu ir para a escola. Eram só quatro livros e todo mundo ficou conhecendo a história. Seja porque leu ou porque ouviu.

DCL – Você não tinha idéia das proporções que seus livros estavam tomando?

TMA – Não, e é uma experiência muito legal.

DCL – Em Uberaba, nas ruas, como é, as pessoas te reconhecem?

TMA – É tão engraçado... nossa... eu dou autógrafo na rua. O povo chega e diz assim: – Você não é o Tiago? Aí eu digo: – Sou. Eles dizem: – Você vai na minha escola? – Eu digo: Vou...

DCL – E você dá autógrafo no papel?

TMA – Também. É assim: – Autografa minha blusa? Aí eu falo: – Sua mãe não vai me bater não? E quando eu dou autógrafo na blusa de um você já viu... Aparece mais um monte.


DCL – O que você tem aprendido com essas visitas às escolas?

TMA – Eu acabo conhecendo lugares da cidade que eu não conhecia, vivo muitas situações novas. E eu repenso aquela coisa que todo mundo fala de que as pessoas não estão interessadas em ler, mas eu vejo que estão sim. Os alunos estão interessados, querem saber qual é o próximo livro, sabe. As crianças escrevem e querem saber das coisas do mundo livro. Talvez o que falte é acesso, mas lá [em Uberaba] a coisa vem acontecendo. E o aluno também tem de ter a sorte de encontrar um professor que incentive, que tenha paixão pela profissão, que tenha comprometimento.

DCL – Fale sobre seu novo livro o 3 x Amazônia.

TMA – A história desse livro me deu um trabalho árduo, porque eu precisava de argumento. Acho que vão me perguntar muito se estive na Amazônia e eu não estive lá, mas vi pelos olhos dos outros que estiveram. E é o olhar do estrangeiro mesmo, o olhar de fascínio. É o olhar que mesmo a gente que mora aqui acaba tendo, porque quarenta por cento do nosso país é floresta. Você se lembra disso quando está aqui em São Paulo? A gente também é um estrangeiro dentro do nosso próprio país. Não temos conhecimento dessa diversidade cultural e esse livro trata da floresta em vários aspectos: da grandiosidade, dos perigos, da fauna e da flora. E o aspecto cultural sociológico: da cultura cabocla, indígena, dos mitos e das lendas. Principalmente esse olhar de fascinação. E não tem um discurso de Salve a floresta. Quero mostrar a magnitude da floresta, implicitamente você já vai respeitar. A intenção é mostrar pelo lado: isso é do meu país e tenho de respeitar e não posso deixar esse cenário acabar. Demorei com a pesquisa, a trama tem de ficar bem amarrada, tive de me preocupar com a descrição da floresta, dos bichos, com as lendas. Demorei um ano, todo dia escrevendo um pouquinho. A floresta é essa explosão, é megalomaníaco: é o maior rio do mundo, é a maior biodiversidade do mundo, é a maior floresta do mundo.

DCL – É o fantástico real?

TMA – É, você falou tudo: é o fantástico real. Quer dizer, existe uma floresta de sete milhões de quilômetros, com 10 milhões de espécies. É um livro que tenta informar um pouco, não como se fosse um livro didático. É um livro feito para desvendar a floresta, seu valor e sua riqueza, tanto do ponto de visto biológico quanto social. Fiz pensando muito no estrangeiro. Descobri, ao pesquisar, que a gente mesmo não conhece a Amazônia. É um olhar do estrangeiro, mas também de quem mora em outros estados.

DCL – Como você registra suas idéias?

TMA – Tenho um caderninho que ganhei numa dessa visitas em escolas. O caderno é todo preto e está escrito em letras coloridas Tiago de Melo. A menina que me deu disse: “eu tô te dando esse caderno pra que tudo o que você escrever nele se realize”. Achei tão bonitinho. Então, quando a idéia é boa, escrevo lá. Pra vingar né. Uso mesmo. Anoto às vezes em papel e perco. O bom mesmo é nem ficar anotando é sentar na hora que se tem a idéia e escrever logo a história. Mas quando a idéia é boa, você fica matutando, não esquece. Também recorto jornais, procuro textos de informações, com dados concretos, pra poder criar cenários reais. E também busco coisas malucas

Comentários